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Mulher do fim do mundo: violência feminicida contra a saúde da mulher negra

Escrito por Cristiane Brandão Augusto, Mariana Freitas da Costa e Maria Celeste Simões


Este artigo se dedica a dialogar sobre a violência feminicida e algumas de suas manifestações contra as mulheres negras. Tem-se como objetivo evidenciar de que forma as vivências cotidianas e as relações sociais e de poder afetam esse grupo populacional e banalizam a violência que as acomete, legitimando altas taxas de mortalidade por diferentes causas evitáveis, sem que estas sejam consideradas um problema de saúde pública. O texto demonstra, a partir de um levantamento bibliográfico, a evitabilidade de mortes em casos de neoplasias malignas, HIV/aids e suicídio resultantes da mitigação ao acesso à saúde, associada a subjugações no sistema patriarcal racista. Negligência e descaso, motivados por racismo e misoginia estruturais, conformam o ‘fazer morrer’ de mulheres negras revelado por uma necropolítica de diagnósticos tardios, falhas em campanhas de conscientização e prevenção, falta de acolhimento e de políticas adequadas a essa população. Relacionando tais violações ao direito à saúde com músicas de Elza Soares, pretende-se trazer a arte como instrumento de denúncia e como recuperação de vozes silenciadas.


PALAVRAS-CHAVES Direito à saúde; Mulheres; Racismo; Violência feminicida; Necropolítica


Introdução

O Brasil é um dos países que mais matam mulheres no mundo – e, em se tratando de mulheres negras (pretas e pardas), as taxas são ainda mais reveladoras da vulnerabilidade histórica e social desse expressivo grupo populacional. Com um feminicídio a cada seis horas, o risco de vitimação sobe 1,7, se considerada a raça não branca, e atinge índice cinco vezes maior nas regiões de maiores desigualdades sociais.


Para além dos registros relativos a mortes violentas, outras violações aos direitos humanos das mulheres integram o largo espectro da violência feminicida, categoria sociojurídica que amplifica a noção da forma extrema de violência de gênero. Importando o conceito da legislação mexicana, trata-se de um produto de abuso de poder público ou privado, manifestando-se por meio de condutas de ódio e discriminação, que colocam em risco suas vidas ou que culminam em homicídio, suicídio ou outras mortes evitáveis, afetando gravemente a integridade, a segurança, a liberdade pessoal e o livre desenvolvimento de mulheres, adolescentes e meninas.


A violência feminicida, nesse sentido, abarca não só o feminicídio, mas também as mais variadas ações ou omissões, individuais ou coletivas, pessoais ou institucionais, domésticas ou estatais, que gerem morte ou perigo de morte em razão do gênero feminino. Incluem-se, aqui, as violações decorrentes das assimetrias estruturais, como: danos resultantes de abortos clandestinos; de enfermidades típicas femininas, quando ausente política de saúde adequada para a prevenção e o tratamento; mortalidade materna ou lesões fatais por violência obstétrica, enfim, um sistema de domínio de gênero, legitimado por uma percepção social hostil às mulheres.


Tal como no feminicídio, sua potencialidade lesiva cresce exponencialmente quando interseccionados os marcadores de raça e classe. Por isso, a proposta deste trabalho é analisar algumas manifestações de violência feminicida contra a mulher negra no Brasil atual, apontando formas pelas quais sistemas de opressão atravessam esses corpos. Isso porque o sequestro histórico de sua humanidade acaba por trivializar as violações que sofrem, legitimando altas taxas de mortalidade por diferentes causas, ainda não consideradas um problema de saúde pública.


A imbricação entre racismo e patriarcado sedimenta hierarquias e subordinações que escancaram o déficit democrático pós-colonial, perpetuando o olhar discriminatório e excludente do acesso às parcas políticas públicas. Trata-se de um Estado necropolítico em sua manifestação máxima de dominação por meio do extermínio, tanto por decidir quem vive quanto quem morre, determinando quais são os corpos inimigos, indignos de comoção.


Tais demonstrações do ‘fazer morrer’ dessas mulheres, que serão abordadas ao longo deste artigo, estão ligadas, sobretudo, ao acesso à saúde. Seja por diagnósticos tardios, seja por falhas em campanhas de prevenção ou políticas específicas e adequadas, os preconceitos raciais e de gênero afetam os cuidados que mulheres negras deveriam (e têm o direito de) receber. Com frequência, negligências e menosprezos no âmbito de acometimentos de saúde mental, de neoplasias malignas e de HIV/aids resultam em mortes, que, conforme será apresentado a partir de revisão bibliográfica, são notavelmente evitáveis.


As dores das mulheres negras foram, potentemente, registradas na voz de Elza Soares. Seus versos formam um convite a refletir sobre como a reivindicação de direitos pode ser especialmente sentida na arte. À vida precária, a cantora responde: “... eu nasci cantando, acho que se não cantasse, eu morreria. Eu já disse várias vezes que cantar ainda é remédio bom e cantando para não enlouquecer”. Igualmente, repete, na música ‘Mulher do Fim do Mundo’, que a deixem cantar até o fim. Assim, este trabalho foi estruturado de modo a contribuir para a visibilidade das dores compartilhadas por tantas outras mulheres e da resistência lírica dessa artista brasileira.



A carne mais barata do mercado

Elza Soares vocifera, em ‘A Carne’, que a mais barata do mercado é a carne negra. É aquela que vai de graça para o subemprego, para os hospitais psiquiátricos, para o presídio e para debaixo do plástico. É a carne na qual se apoia o racismo estrutural, fornecendo o “sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”. É a carne dos não humanos, das vidas não passíveis de luto.


Na especificidade da mulher negra, é relevante destacar o esvaziamento de sua condição humana na perspectiva do dominador, já que, como consequência dos tempos de escravidão, perdura uma visão de assimetrias de gênero e raça que acaba por naturalizar desigualdades e, nesse contexto, banalizar violências. Assim também se dá com a violência feminicida:


[...] que envolve as mortes violentas de meninas e mulheres, como por exemplo as resultantes de acidentes, suicídios, descaso com a saúde e violência e, evidentemente, o conjunto de determinações que os produzem. Esta definição baseia-se no pressuposto de que estas mortes são produzidas no quadro da opressão de gênero e de outras formas de opressão, e, portanto, são evitáveis, e, por isso, são mortes violentas.


É importante ressaltar que, embora aparentemente exista uma relação entre os envolvidos em uma situação de violência, não se deve tratar a questão como algo personalizado, pois trata-se de um problema que atinge as camadas mais profundas da nossa organização como sociedade. É o que propõe Rita Segato com a categoria ‘femigenocídio’:


[...] por sua qualidade sistemática e impessoal, têm como objetivo específico a destruição de mulheres (e homens feminizados) apenas por serem mulheres e sem a possibilidade de pessoalizar ou individualizar o motivo da autoria ou a relação entre agressor e vítima.


Em razão da impessoalidade da violência e da evitabilidade das mortes, pode-se assimilar que a violência feminicida contra a mulher negra é institucional e estrutural, ou seja, é perpetrada tanto por inexistência (ou ineficácia) de políticas públicas para proteção do grupo marginalizado quanto por um conjunto de preconceitos que afetam as relações sociais e violam sua dignidade.


Mais próximo do olhar sobre as políticas de saúde, será enfocada a demonstração de como o diagnóstico tardio e a desigualdade no acesso à saúde e exames preventivos acarretam uma taxa de óbito maior em mulheres negras em comparação às não negras:


Embora a legislação brasileira reconheça a saúde como direito universal sem distinção de raça/cor, credo etc., no contexto observado, aparece como direito alienado porque, concretamente, o bem-estar físico e mental dos/ as negros/as são limitados pelas dificuldades de acesso que esses indivíduos, seus grupos e famílias têm para acessar moradia, saneamento básico, educação, emprego, cultura, lazer, proteção etc. A violação de qualquer um desses direitos impacta a saúde, agravando as variáveis associadas ao adoecimento e a adesão a tratamentos, especialmente daquelas doenças possíveis de ser evitadas ou controladas pela prevenção.



Menina acuada, que tanto sofreu e morreu sem guarida

Em ‘Dentro de Cada Um’, Elza Soares provoca a resistência à subordinação. Canta que mulheres não querem mais silêncio, nem pretexto, nem para fugir de seu texto, e as convida a sair de dentro de quem for; sair da mala do cara que as esquartejou, que as encheu de ferida; da menina acuada que sofreu e morreu sem guarida.


Morrer sem guarida. A violência feminicida em forma de desigualdade no acesso à saúde pelas mulheres negras está explicitada em dados estatísticos. Segundo Albert et al., atualmente, as maiores causas de morte entre mulheres de idade fértil são as neoplasias malignas, ou seja, tumores cancerígenos, principalmente o câncer de mama, o câncer de colo de útero e o câncer de ovário.


É particularmente importante ressaltar que, embora, por motivos sociais e históricos, com frequência, a questão da raça se interseccione com a classe socioeconômica da mulher, há pesquisas apontando que as disparidades raciais no campo da saúde continuam significativas mesmo com análise ajustada por variáveis socioeconômicas. Ademais, alguns estudos apontam para uma maior ocorrência e gravidade do câncer em mulheres negras de maneira geral, mas ainda sem pesquisas que consigam apontar o motivo. Sobre neoplasias mamárias, Nogueira et al. discorrem:


As mulheres de raça/cor negra foram diagnosticadas em estadiamentos mais avançados, e essa característica foi importante para lhes conferir menor sobrevivência em comparação com as brancas. Isso se deve provavelmente a menor acesso e/ou menor adesão ao rastreamento do câncer de mama por meio da mamografia, embora também possa ser, em parte, atribuído a um comportamento mais agressivo do tumor em mulheres negras.


Além do câncer de mama, há indícios dessa disparidade na ocorrência de câncer de ovário. Harris et al. apontam que há uma relação maior entre a endometriose e os tipos mais comuns de câncer de ovário em mulheres negras em comparação a mulheres brancas. No mesmo estudo, fica demonstrado que a histerectomia diminuiu consideravelmente o risco de mulheres brancas desenvolverem o tumor mencionado, enquanto não houve diferença significativa no caso de mulheres negras.


Os tipos de câncer de ovário mais evidentes em mulheres negras são: carcinoma endometrioide e carcinoma de células claras. Importa fazer essa especificação dado que o carcinoma de células claras é o tipo mais agressivo de câncer de ovário, com respostas menos favoráveis ao tratamento, desse modo, aumentando consideravelmente as taxas de óbito.


As discrepâncias mencionadas justificariam amplas pesquisas sobre a saúde da mulher negra e investigações sobre qual o melhor método de prevenção, mas não é o que ocorre no Brasil. Nogueira et al. mencionam uma pesquisa dos Estados Unidos da América que sugere, haja vista a maior ocorrência e agressividade do câncer de mama em mulheres negras, que elas iniciem o rastreamento da doença mais cedo do que mulheres brancas, porém, ainda não há evidências que políticas públicas com enfoque na saúde da mulher levem essa recomendação em consideração.


Inclusive, as diferenças nas predisposições para patologias em mulheres não são sequer estudadas extensamente. A maior parte das pesquisas realizadas são conduzidas estudando predominantemente mulheres brancas e não analisam seus resultados considerando a raça, além de não haver pesquisas voltadas unicamente para a saúde de mulheres negras.


Ao falar de óbito por motivos de doença, não se pode desconsiderar a relação deste com o diagnóstico tardio. Em pesquisa realizada por Renna Junior e Silva, os autores apontam que os diagnósticos em estágios mais avançados de câncer de colo de útero, que, assim como os demais citados, é mais evidente entre mulheres negras, aumentaram com o passar dos anos e que


Esse achado é importante por sugerir que as políticas de atenção oncológica não têm sido capazes de propiciar diagnóstico precoce, capaz de garantir não apenas melhor prognóstico como também redução da incidência da doença mediante tratamento de lesões pré-invasivas.


Desse modo, entende-se que é possível diagnosticar as neoplasias malignas de modo a evitar o agravamento da doença e, assim, ‘evitar a morte’ pelas patologias citadas. No entanto, por fatores como a dificuldade de acesso à saúde e a exames de rastreamento, o diagnóstico é feito em estágios em que as respostas ao tratamento são frequentemente insatisfatórias.


Nesse sentido, Mendonça et al. discorrem sobre a evitabilidade da morte por câncer de colo do útero. Ainda assim, a taxa de mortalidade da doença entre negras é estarrecedora. Em números, a disparidade das taxas de mortalidade entre negras e brancas se apresenta em duas das neoplasias mencionadas: o câncer de mama e o câncer de colo do útero.


Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais denunciou que as mulheres negras têm uma sobrevida 10% menor do que as mulheres brancas no que tange ao câncer de mama. Outra pesquisa sobre o mesmo tema aponta que, enquanto quase 70% das mulheres brancas sobreviveram à doença durante o tempo do estudo, que durou uma década, apenas 44% das mulheres negras tiveram a mesma sorte. A taxa de mortalidade por câncer de colo do útero é igualmente alarmante. Em pesquisa realizada em Pernambuco, ficou demonstrado que 60,5% dos óbitos pela doença são de mulheres negras, com dados mais recentes indicando uma mortalidade de 71,4% no grupo.


Com dados tão inquietantes, cabe discutir quais elementos acarretam a morte de tantas mulheres por causas notadamente evitáveis. A razão principal apontada em diversos estudos é o diagnóstico tardio, que, por muitas vezes, é consequência da não realização de exames preventivos por falta de acesso à saúde.


Paulista, Assunção e Lima responsabilizam o racismo pela inequidade no acesso aos tratamentos oncológicos. Segundo os autores, o preconceito se manifesta


[...] pela dificuldade em reconhecer e abordar os determinantes sociais das condições de saúde, na utilização desagregada de dados para orientar uma tomada de decisão, na definição de prioridades e alocação de recursos, bem como na ausência de meios de coibição de práticas racistas inadmissíveis. Essa desigualdade também se manifesta no acesso aos serviços de atenção oncológica, mesmo diante de estratégias de combate ao racismo institucional e ações que beneficiem a equidade na saúde.


É preciso questionar o que motiva essas mulheres a não aderirem a programas de prevenção, mesmo quando possuem acessibilidade a eles. Segundo Silva e Lima, não se pode responsabilizar a população negra pelos fracassos consequentes da violência estrutural. De fato, o ambiente médico se torna hostil ao ponto de repelir essas mulheres de tratarem de sua saúde, vendo com desconfiança e até com medo os profissionais que as atendem – atendimento este que muitas vezes é incompleto. De acordo com as autoras supracitadas, em pesquisa baseada em observações de campo, recorrentemente, mulheres negras informaram não terem sido examinadas ou sequer ouvidas pelos profissionais da saúde.


A violência não vem apenas na forma de negligência, mas também de humilhação. A prática médica é comumente acompanhada de comentários depreciativos, com frequência ligados ao feminino. A ideia de que ‘mulher foi feita pra sentir dor’, associada à visão de que ‘as negras possuem maior capacidade de aguentar a dor’, cria um cenário violento para as mulheres negras no âmbito da saúde, em que suas dores são minimizadas e desqualificadas. A concepção de que o sofrimento é inerente à mulher transparece a conivência com a violência de gênero, “consumada dentro dos espaços institucionais, que encarceram a mulher enquanto objeto, coisificando seus corpos numa lógica utilitarista”.


Amiga, é agora, segura a minha mão

Segurar a mão e não (se) deixar sucumbir também foram versos cantados por Elza Soares na música ‘Libertação’. A violência feminicida, entretanto, se faz marcada na maior vulnerabilidade de mulheres negras à infecção por HIV. A mortalidade pelo vírus é majoritariamente da população negra, com 61,9% dos óbitos, entre eles, 62,9% são de mulheres.


De forma similar às pesquisas sobre neoplasias malignas, os estudos sobre infecção por HIV em mulheres negras explicam que os elementos considerados mais significativos para a dificuldade de acesso à saúde são a condição socioeconômica e o racismo institucional.


Sobre o atendimento negligente dado a mulheres negras, pode-se dizer que este afeta a saúde das pacientes em diversas esferas. Uma delas é a perda de credibilidade dos profissionais da saúde na visão das mulheres: em pesquisa realizada por Albuquerque, Moço e Batista, apenas 129 das 1.464 mulheres negras entrevistadas identificaram os profissionais da área como fontes de informação sobre a doença; a maior parte das participantes do estudo declararam confiar em amigos e em meios de comunicação para se informar a respeito do HIV. O descaso pelo bem-estar das pacientes é notável inclusive no tratamento:


O cuidado oferecido a essas mulheres parece focalizar quase exclusivamente o tratamento anti-retroviral e o manejo clínico da infecção, sem atentar que a atenção integral pode beneficiar o sucesso do tratamento clínico (com o controle de outros processos concomitantes de adoecimento, por exemplo), além de responder à legítima demanda por qualidade de vida.


Outra maneira de distanciar o profissional e a paciente é a dificuldade na comunicação:


Ao perder a oportunidade de se fazer entender, os profissionais deixam de contribuir para a melhoria da qualidade de vida da mulher e, indiretamente, incrementam sua vulnerabilidade ao adoecimento. No caso das mulheres envolvidas no presente estudo, as desvantagens assumiram maior peso entre as negras.


A importância da comunicação eficaz para assegurar condutas preventivas é reiterada por López, que discorre sobre a relevância de incentivar políticas públicas e campanhas de prevenção contra HIV/aids que transmitam a mensagem no linguajar do destinatário da ação. A pesquisadora, articulada com militantes do movimento feminista negro, percebeu que, quando a comunicação não é uma barreira, há mais adesão a ações de prevenção, sobretudo dos jovens que estão iniciando a vida sexual:


[...] um dos fatores que produzem vulnerabilidade entre a população negra ante o HIV é a não identificação com linguagens transmitidas nas campanhas de prevenção que se pensam ‘neutras’ em termos étnicorraciais, mas que refletem olhares brancos estereotipados sobre o tema, que remetem a noções morais tidas e vistas como universalizantes e dominantes.


As pressões sociais vêm, notadamente, de uma cultura patriarcal e machista, que desencoraja as mulheres de tomarem decisões importantes sobre o próprio corpo, como o uso de preservativo – um dos meios mais eficazes de prevenção, dado que 80% das mulheres contraem o vírus pela via sexual. Ativistas do feminismo negro, ouvidas na pesquisa de López, apontam que, frequentemente, as mulheres têm dificuldade de negociar o uso de preservativo com seus parceiros, mesmo em casais estáveis que mantêm relações desprotegidas com outras parceiras. Nesse sentido, a hipersexualização da mulher negra e o julgamento moral reprimem a firmação de um acordo entre os parceiros para o uso do preservativo.


Esse tipo de negociação é particularmente delicado levando em consideração que a violência, doméstica e sexual, faz – ou fez – parte da vida dessas mulheres, e o trauma as torna mais suscetíveis à decisão tomada unilateralmente pelo parceiro. Ademais, mesmo entre as mulheres que não sofreram as supramencionadas violências, ainda existe um fator que as refreiam de optar pelo sexo seguro. É o que os autores chamam de ‘proteções imaginárias’: a concepção de que relações de confiança são protetoras diante da possibilidade de infecção pelo HIV.


Percebe-se, assim, que mesmo o Brasil tendo um dos melhores programas de tratamento e prevenção de HIV/aids, as autoridades permanecem negligentes com as parcelas mais vulneráveis. Tal fato é agravado quando se considera que, ainda que as mulheres negras possuam 51% mais chance de desenvolver aids do que mulheres brancas, a enorme discrepância não foi suficiente para qualificá-las como população prioritária no quesito de políticas de prevenção da doença.


Escuras flores puras, putas… Suicidas

As ‘Flores Horizontais’ na voz de Elza Soares retratam a flora da vida, afogadas nas janelas do luar e carbonizadas de remédios, tapas e pontapés. Está se falando do âmbito da saúde mental. A articulação entre as dimensões sanitária e social é indispensável, pois, nos territórios populares, a saúde da mulher é também uma complexa questão, envolvendo insegurança alimentar, precariedade das moradias, dificuldade de acesso a informações e equipamentos, entre muitos outros fatores que influenciam diretamente na qualidade das condições de prevenção.


A maior vulnerabilidade social experienciada pelas mulheres negras se descortina por intermédio das situações de tensionamentos pelas denominadas microagressões raciais de gênero, ou seja, processos de marginalização, silenciamento e objetificação que podem gerar impacto nas relações interpessoais, com supressão das emoções e vivências de efeitos negativos em sua saúde mental, diferentemente daqueles experienciados por mulheres brancas.


De acordo com Dantas et al., as exclusões e os preconceitos sociais têm relação direta com o sofrimento humano, o que pode ser agravado – ou não – pela presença de psicopatologias. Evidencia-se, inclusive, que a redução de desigualdades resulta em uma queda de violência, incluindo as autoinfligidas:


Enfatiza-se que, além das marcas explícitas da violência de gênero, que podem se expressar em ferimentos no corpo, há sofrimento psicossocial inerente a qualquer processo de violência. Isso está presente, inclusive, pelo fato de muitas mulheres internalizarem esse sofrimento e não conseguirem expô-lo, o que fragiliza as relações interpessoais e familiares, realimenta traumas e pode deixá-las com a sensação de não haver escapes possíveis além da morte autoprovocada.


Para as mulheres que tentam quebrar o ciclo de silêncio e buscam ajuda de profissionais da área da saúde mental, ainda há obstáculos para o processo de cura. Nesse contexto, Gouveia e Zanello33 denunciam o impacto do racismo institucional no tratamento psicoterapêutico das mulheres negras. As autoras tecem suas críticas ao ambiente psicoterapêutico em duas frentes: a influência do racismo institucional no atendimento das pacientes e as falhas acadêmicas na formação de profissionais sensíveis à questão racial. Sobre o primeiro ponto, a pesquisa demonstrou a insatisfação das mulheres com os serviços recebidos, pois, quando era abordado pela paciente o racismo como fonte de sofrimento psíquico, os psicoterapeutas não exploravam ou não consideravam o tema na sessão. A respeito da formação profissional faltosa, é apontado que tanto psicólogas brancas quanto negras não consideraram o fator do preconceito racial e de gênero como norteador da terapia, minimizando a questão quando esta era mencionada pela paciente.


Dados sobre suicídio em mulheres negras são trazidos por Martins, Lima e Santos, além de Dantas et al.. Os primeiros alertam que, segundo o Ministério da Saúde, as mulheres negras morrem mais que as brancas quando se consideram óbitos por homicídio, suicídio e mortes mal definidas. Já Dantas et al. elaboraram uma pesquisa local, centrada no nordeste do Brasil, mas que ajuda a elucidar essa disparidade em números. Conforme os autores, mulheres negras se suicidam mais que mulheres brancas em uma taxa geral de 73,9%, chegando até a 87,09% em Alagoas. Não foram encontrados dados mais recentes e unificados que considerem as mortes autoinfligidas em todo o País.


Considerações finais: mulheres assassinadas. A justiça, por favor

O presente escrito buscou demonstrar como os atravessamentos de gênero e raça da violência feminicida atingem a mulher negra. Adotando a conceituação proposta por Lagarde y de los Ríos para as mortes evitáveis decorrentes de opressões de gênero e suas interseccionalidades – e sem a pretensão de esgotar o tema –, foram apresentadas algumas das manifestações da violência feminicida, sobretudo na negação do acesso à saúde.


Mesmo que não haja distinção expressa em nenhum dispositivo legal nacional ou convenção internacional firmada pelo Brasil, o acesso aos direitos humanos ainda é notavelmente desigual. Essa discrepância reforça a vulnerabilidade da mulher negra diante de ações ou omissões institucionais que retroalimentam sistemas estruturais de opressão. Assim, a violência feminicida em diversas frentes, como as tratadas neste artigo (o diagnóstico tardio de cânceres, a ineficácia de campanhas de prevenção contra o HIV, o sofrimento psíquico que resulta em suicídio), revela o maior assujeitamento ao risco de morte das mulheres não brancas operado pelo racismo e pelo patriarcado.


Cabe ressaltar uma última vez que, mesmo que seja consequência de preconceitos sobre raça e gênero, a violência feminicida não deve ser pessoalizada, porquanto constitutiva de construções sociais que permeiam toda a estrutura da sociedade. A justiça almejada por Elza Soares, na música com mesmo nome, é a justiça do País melhor, com menos incerteza sobre o amanhã.


Em razão disso, o estudo procurou ilustrar como a arte atua como força motriz para reivindicações sociais, resgatando vozes historicamente silenciadas. Nomeando os subtítulos aqui apresentados com trechos de músicas ecoadas por Elza Soares, é possível se somar ao coro das violências sofridas para a reivindicação de políticas adequadas e atentas às especificidades das mulheres negras.



Para acessar o texto em sua versão original, acesse: https://doi.org/10.1590/2358-28982023E19100P

 
 
 

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