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Narrativas sobre feminicídio no Sistema Brasileiro de Justiça Criminal: O reducionismo da "lógica dos quatro elementos"

Escrito por Cristiane Brandão Augusto e Marcello de Oliveira Bertacchini



A recepção da definição legal do feminicídio pelo sistema brasileiro de justiça criminal vem, na prática, restringindo seu enquadramento à verificação de quatro elementos: i) relação íntima de afeto, ii) heterossexual, iii) praticado por homem cisgênero; iv) contra mulher cisgênero. Por meio de pesquisa empírica nos Tribunais de Justiça estaduais da Região Sudeste e do referencial teórico-crítico feminista, pretendemos contribuir para uma interpretação do tipo penal menos enviesada de constructos estereotipados ou padronizados.


Introdução

Com a finalidade de investigar as violações aos direitos humanos das mulheres no Brasil e de apurar denúncias de omissão por parte do Poder Público, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de Violência contra a Mulher produziu vasto e qualificado relatório. Publicado em 2013, suas 1.049 páginas mapearam os marcos normativos de proteção, os equipamentos de Política Nacional e a situação de enfrentamento à violência de gênero nos estados. Com a reunião desses dados, elaborou recomendações a diversos órgãos, trezes projetos de lei (PLs) e uma proposta de resolução do Congresso Nacional. Dentre essas proposições, destacamos a tipificação do feminicídio.


Assim, no mesmo ano, deu-se início à tramitação do PL 292, visando à alteração do art. 121 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Sua "justificação" e todo o conteúdo do relatório dão conta de expressar o (re)conhecimento de numerosas pesquisas empíricas e analíticas feitas pela literatura feminista, bem como de fortalecer o compromisso assumido internacional e regionalmente por nosso país quanto à eliminação de todas as formas de discriminação (Organização das Nações Unidas, 1979) e quanto à prevenção, à punição e à erradicação da violência contra a mulher (Organização dos Estados Americanos, 1994).


Embora substancialmente técnica e objetivamente qualificada, a proposição da CPMI se diluiu de tal maneira nos corredores brasilienses que sugere uma apropriação oportunista do patriarcado, especialmente de grupos de cariz conservador e/ou religioso, para a imposição de uma escrita que lhes fosse mais palatável. No fim de seu trâmite, vemos a publicação da Lei 13.104/2015, em cujo conteúdo não se identifica o termo "gênero", nem há expressa menção às múltiplas formas de manifestação de um crime de ódio. Como resultado, temos a definição do feminicídio como o homicídio de uma mulher por razões da condição do sexo feminino, redação tendenteaquestionamentos sobre seu sentido, natureza e alcance, facilitando, por sua vez, o encapsulamento nas relações "marido-mulher" e a invisibilização da violência contra a população LBTQI (lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersexos).


É sobre a recepção dessa disputa narrativa (entre estudiosas de referência no tema e setores reacionários do legislativo federal) pelo sistema brasileiro de justiça criminal, seus impactos concretos e o possível esvaziamento da potente categoria performática do feminicídio que nos dedicaremos neste texto.


Por meio do referencial teórico-crítico feminista e do estudo do Direito Penal com perspectiva de gênero e interseccional, exploraremos os elementos objetivos do feminicídio, a fim de contribuir para uma interpretação do tipo penal menos enviesada de construtos estereotipados ou padronizados e mais sensível ao reconhecimento da violência letal por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, mesmo quando se escapa às relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto.


Ademais, com base em extensa pesquisa empírica realizada na jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais da Região Sudeste, analisando processos de 2015 a 2019, mapeamos dados relativos à relação réu-vítima - meio empregado, motivo, local do fato e outros marcadores relevantes - que dão conta das limitações de tratamento dispensado ao tipo penal do feminicídio e nos permitem algumas reflexões a serem exploradas ao final deste ensaio.


Feminicídio: a construção de um conceito políticоepistemológico


O Brasil foi um dos últimos países da América Latina a aprovar o tipo penal do feminicídio, quase dez anos depois da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). E, perto de se completar uma década da aprovação da Lei 13.104/2015, o sistema de justiça criminal, no seu fazer cotidiano, ainda não absorveu todas as dimensões desse fenômeno social e político complexo. Mas, afinal, qual a história do conceito de feminicídio nos últimos séculos?


O primeiro registro do termo é datado de 1801, sob a grafia femicide, na obra A Satirical View of London at the Commencement of the Nineteenth Century, do escritor irlandês John Corry (1801). No livro, o autor critica uma prática corriqueira de alguns endinheirados da Londres do século XIX, que seduziam jovens mulheres nas vias públicas, prometendo-lhes quantias em troca de sua virgindade. О termo femicídio é mobilizado para manifestar a ideia de que o aceite desse tipo de proposta por uma mulher significaria, em maior grau, fato tão danoso para a sua honra que poderia ser descrito como a sua própria morte'. O vocábulo apareceu também nos verbetes de alguns dicionários, dotado desse mesmo significado: o homicídio em cujo polo passivo figura uma mulher (Femicide, 2012). Foi só a partir da década de 1970, com Diana Russell, que a palavra começou a atingir a densidade político-epistemológica que atualmente lhe é atribuída. Em 1976, durante seu discurso no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, em Bruxelas, Russell mobilizou o termo femicídio pela primeira vez, iniciando o contorno de linhas teóricas para se pensar a violência letal contra mulheres por meio de uma perspectiva feminista, que evidencia um sistema de relações díspares de poder, alicerçado na categoria analítica de gênero. Com isso, o femicídio deixou de ser compreendido sob a perspectiva generalizante, da morte real ou simbólica de uma mulher, para ser tratado como o assassinato de uma mulher por ser ela mulher, atravessada por relações de poder fundadas em uma sociedade patriarcal.


É diante desse cenário que Caputi e Russell (1990, p. 34, tradução nossa) definem femicídio como "o assassinato de mulheres realizado por homens motivado por ódio, desprezo, prazer ou por um sentimento de propriedade sobre as mulheres" Dois anos depois, Radford e Russell (1992, p. 3, tradução nossa) enxugam o conceito anterior, definindo-o como "o assassinato misógino de mulheres por homens" Nessa ocasião, as autoras alocam a violência feminicida como o extremo de um continuum de violências que perpassam a experiência de ser mulher no patriarcalismo estrutural.


Posteriormente, a definição de femicídio foi atualizada para "о assassinato de mulheres por homens porque elas são mulheres" (Russell; Harmes, 2001, p. 3, tradução nossa). Segundo as autoras, a atualização se deu pela necessidade de ampliar o conceito para além dos assassinatos misóginos, abarcando todas as formas de assassinato sexista. Desse modo, o conceito de femicídio passou a incluir não apenas os assassinatos provocados pelo ódio às mulheres, mas também aqueles que são perpetrados por homens em razão de sua suposta superioridade sobre elas; aqueles que decorrem da suposição de propriedade dos homens sobre elas; e aqueles que envolvem desejos sádicos contra seus corpos.


A partir da década de 1990, o conceito de femicídio formulado por Russell, Radford, Caputi e outras autoras feministas do norte global passou a ser progressivamente mobilizado por ativistas e acadêmicas mexicanas para dar inteligibilidade às sistemáticas ocorrências de assassinato de meninas e mulheres em Ciudad Juárez, estado de Chihuahua, México². Os casos chamavam atenção, sobretudo, pelo requinte de crueldade envolvida: os corpos eram encontrados em valas, terrenos baldios e lixões com sinais de violência física, sexual e de tortura.


Percebia-se, no modus operandi, que muitas vezes os golpes eram direcionados aos atributos de "feminilidade" das vítimas: áreas genitais e seios, desfiguração de rostos, excesso de brutalidade, não raramente cabelos eram cortados, ou seja, tratamento degradante e destrutivo em relação aos corpos femininos (e feminizados). Concomitantemente, o desaparecimento de outras tantas mulheres levantava hipóteses de ocultação de cadáveres e de tráfico de pessoas. Estima-se que, desde 1992, mais de 650 mulheres foram encontradas mortas e mais de 4.500 desapareceram na cidade (Pasinato, 2011), o que era acompanhado pelo desinteresse do poder público em investigar diligentemente, seja pela grande influência exercida pelo crime organizado nas instituições locais ou pela participação/cumplicidade de diversos agentes públicos nesses assassinatos (Segato, 2005).


Dentre as principais estudiosas dos assassinatos de Ciudad Juarez, está Marcela Lagarde y de los Ríos. Ex-congressista e antropóloga mexicana, ela cunhou a palavra "feminicídio" sob o argumento de que, em espanhol, a mera tradução para "femicídio" poderia gerar a redução do fenômeno ao "homicídio de mulher. O neologismo, pelo menos em um primeiro momento, possuía o mesmo significado da concepção desenvolvida por Russell - a morte de mulheres por homens porque elas são mulheres -,e buscava elucidar o fato de que o conceito trata "da construcão social de crimes de ódio, da culminação da violência de gênero contra mulheres" (Lagarde y de los Rios, 2006, p. 12).


Posteriormente, em seu empenho para analisar e denunciar os assassinatos sexistas que ocorriam em seu país, Lagarde (2006) trouxe dois novos aportes epistemológicos à definição de feminicídio: o contexto de admissibilidade social da violência letal contra meninas e mulheres e a inércia/omissão do Estado para investigar e processar esses crimes. Sob esse prisma, a autora considerou o feminicídio como crime de Estado, visibilizando a responsabilidade das instituições mexicanas, seja pela falta de políticas públicas efetivas, seja pela falta da devida diligência nas investigações e nos processamentos desses delitos.


A edição de normas relativas ao enfrentamento à violência de gênero - em que se inclui o conceito legal de feminicídio - já era demandada pelas feministas desde há muito e, fortemente no Brasil, a partir da década de 19705. Na América Latina, importante marco legal foi a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher® (Organização dos Estados Americanos, 1994).


A partir das diversas construções legais de feminicídio, identificamo-lo como uma categoria socioantropológica, correspondendo a normativa de cada país à sua respectiva experiência histórico-cultural. O nomen iuris atribuído ao tipo em cada legislação, por exemplo, varia entre femicídio, feminicídio e outras denominações genéricas.


No Brasil, a Lei 13.104 entrou em vigor em 2015, alterando o Código Penal (CP) e a Lei dos Crimes Hediondos. Na definição da qualificadora do homicídio, acrescentou-se o inc. VI ao §2°, do art. 121, do CР, entendendo-se por feminicídio a conduta de matar uma mulher "por razões da condição do sexo feminino" E, pela explicação do §2°-A, há razões dessa condição quando o crime envolve: "I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher"


Desde a propositura do PL 292 até sua aprovação final, presenciamos modificações robustas na redação. Originalmente, o projeto definiu o feminicídio como a


[...] forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias: I - relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado; II - prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte; III- mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte (Brasil, 2024).


A substituição da elementar "gênero" por "sexo" não só permite transparecer o contexto de forças políticas e religiosas reacionárias atuantes no Congresso Nacional e em algumas esferas da sociedade (Lacerda, 2018), como também transborda para as apreciações jurídico-penais sobre o conceito de "sexo feminino"7, dificultando a possibilidade de contemplar questões ligadas à identidade de gênero para âmbito da incidência do tipo penal.


Ademais, a subtração dos números II e III, do §2°-A, que estavam presentes na concepção original do projeto, operou um deslocamento de matriz objetiva ("violência sexual", "mutilação", "desfiguração") para o aspecto motivacional ("menosprezo", "discriminação"), de natureza subjetiva. Tal operação refreou melhor compreensão do fenômeno feminicida. Pautados, antes, na descrição factual sócio-histórica, os incisos se encontravam mais próximos à ilustração capaz de orientar a interpretação jurídica conforme as experiências concretas e à literatura brasileira e latino-americana.


A definição atual, portanto, promove esparso reconhecimento da qualificadora quando se escapa a uma relação doméstica ou familiar, restringindo seu enquadramento, na prática, aos casos de feminicídio íntimo. E mais, reduzindo-o ao contexto de i) relação íntima de afeto, ii) heterossexual, iii) praticado por homem cisgênero; iv) contra mulher cisgênero. Qualquer situação que fuja a esses quatro elementos pode configurar obstáculo à identificação de um feminicídio pelo sistema de justiça criminal, como veremos a seguir.


A lógica dos quatro elementos

Nas pesquisas realizadas anteriormente sobre processos de feminicídio em tramitação nos quatro Tribunais do Júri da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, já havíamos notado um conjunto de limitações hermenêuticas sobre a norma penal e de incompreensões sobre o papel do sistema policial e jurisdicional no enfrentamento à violência de gênero, que trouxe significativas resistências à efetivação das normas protetivas dos direitos humanos das mulheres. Registramos, por exemplo, a sistemática reprodução dos estereótipos de gênero nas peças processuais e nas argumentações da acusação e da defesa; a (re)vitalização da passionalidade criminosa; a patologização da conduta do acusado; a culpabilização da vítima e sua revitimização; e a falta de conhecimento da literatura e dos movimentos feministas, bem como de percepção histórico-política e epistemológica do "femicídio/ feminicídio" (Augusto et al., 2019). Buscando conferir a atuação do Judiciário de outros estados no processamento e julgamento desse crime, nossas inquietudes se estenderam a todo o território nacional, levando-nos a investigar casos, na jurisprudência dos sites de todos os Tribunais de Justiça estaduais e do Distrito Federal, pelos termos "feminicídio"; "art. 121, §2°, VI, CP"; "art. 121, §2°-A, CP"; e "mulher e homicídio


Apesar de cientes da maior restrição que a perquirição de segunda instância impõe - basicamente, se acessam habeas corpus, recurso em sentido estrito e apelação -, características importantes sobre o gênero da vítima, sua relação com o réu, o instrumento, o local, a suposta motivação do crime etc. puderam ser extraídas em boa parte das consultas. Neste texto, iremos nos dedicar a relatar os dados obtidos na região Sudeste quanto à majoritária presença dos quatro elementos acima destacados.


Trabalhando com o referencial de processos de 2015 a 20192, sempre cautelosos com a verificação da ocorrência do fato já ao tempo da vigência do tipo penal¹3, apreciamos os 1.093 casos de feminicídio revelados nessas buscas, sendo 515 em São Paulo (47,12%), 332 em Minas Gerais (30,37%), 228 no Rio de Janeiro (20,86%) e 18 casos no Espírito Santo (1,65%). Destes, 536 (49,03%) consumados (em SP, 207; MG, 186; RJ, 128 e ES, 15) e 557 (50,93%) tentados (em SP, 308; MG, 146; RJ, 100; ES, 3).


Na apreciação da relação réu-vítima, em termos percentuais, as (ex-)relações íntimas heteroafetivas compõem 81% dos números de SP; 80,4% em MG; 62,7% no RJ (atentando para os 28% de relação réu-vítima não relatados nos acórdãos) e 83,3% no ES. Quanto aos relacionamentos entre lésbicas e/ou bissexuais, apenas em SP e no RJ apareceram processos imputando feminicídio, mas em ambos o quantitativo ficou abaixo de 1%.


O gênero dos réus corrobora a predominância da violência patriarcal praticada por homens cisgêneros: 1.061 (97,07%) masculino; 18 (1,64%) feminino e 6 (0,54%) ambos, agindo em concurso. Apenas em 8 (0,73%) do total de processos do Sudeste não houve a identificação. No outro polo, somente em um caso de todo o Sudeste a vítima foi uma mulhertransexual.


Nesse quadro, podemos perceber que, dos processos judiciais de feminicídio que tramitaram em segunda instância do Sudeste brasileiro até 2019, mais de 77% versaram sobre relações íntimas heteroafetivas (em curso ou já findas no momento do crime) entre um homem cisgênero e uma mulher cisgênero. Tal padrão pode, de fato, revelar como esse fenômeno social se manifesta no Brasil, mas, por outro lado, pode levantar questionamentos sobre um olhar seletivo do sistema de justiça criminal, que predominantemente enxerga o feminicídio a partir da estrutura cis-heteronormativa, invisibilizando tantas outras mortes violentas de mulheres.


Ainda, se associarmos os mais de 77% à média de quase 6% daqueles que envolvem relações familiares, totalizamos mais de 83% de feminicídios em sede de Lei Maria da Penha¹. De certa maneira, é como se a lógica familista e reducionista que preside o tratamento culturalmente dispensado à violência de gênero utilizasse a conjunção "e" nas circunstâncias alternativas dos incisos I e II, do parágrafo 20- A, do art. 121, CP, para resumir o feminicídio aos casos de violência doméstica e familiar, quando houver menosprezo ou discriminação à condição de mulher.


Os números de violência doméstica são incontestavelmente alarmantes em nosso país. Contudo seria apressado concluir que há uma predominância de feminicídio íntimo. Se tivemos no Mapa da Violência de 2015 (Waiselfisz, 2015), a apuração de 13 mortes violentas de mulheres por dia no Brasil (uma a cada uma hora e meia), por que em 2017 o número "diminuiu" para dois feminicídios por dia (Monitor da violência [...], 2018)"? Seria possível inferir a eficiência das políticas públicas nessa seara ou será que, a partir da introdução da categoria "feminicídio" nos registros de ocorrência em sede policial, o olhar seletivo do sistema penal passou a impactar as estatísticas? Da mesma forma, como explicar um único processo de transfeminicídio no Sudeste, se os dados da violência contra a população LGBTІ+ elevam o Brasil ao primeiro lugar do ranking mundial? Em um levantamento realizado sobre ocorrências de 2020 (portanto, mais próximo do recorte temporal que utilizamos), das 237 mortes violentas de LGBTI+, 66 se deram no Sudeste e 70% incidiu sobre corpos de mulheres transgêneros e travestis (Observatório de Mortes Violentas LGBTI+ no Brasil, 2020). Assim, cabe indagar se tais casos não são levados à segunda instância, se há maior lentidão na investigação e no processamento ou se sequer são tipificados como feminicídio.


O que nos ensina a experiência latino-americana

Apesar das distintas definições legais e das diferenças entre os fatos que suscitaram a criação das normas internas, o fenômeno das mortes violentas de mulheres na América Latina revela a interseção de gênero, raça, classe e outros marcadores, na qual se desempenha o patriarcado estrutural. Nesse sentido, exercitar a percepção do feminicídio fora da "lógica dos quatro elementos" requer conhecer a forma como as referências culturais existentes embasam o julgamento moral da conduta da mulher, naturalizando-se a violência quando seu comportamento se desvia dos papéis estabelecidos como "adequados ou normais":


Os fatores que diferenciam o crime de femicídio do homicídio de um homem - e, inclusive do homicídio comum de uma mulher - salientam que, pela morte violenta, pretende-se refundar e perpetuar os padrões que, culturalmente, foram atribuídos ao significado de ser mulher: subordinação, fragilidade, sentimentos, delicadeza, feminilidade, etc. Isto significa que o agente femicida, ou seus atos, reúne um ou vários padrões culturais arraigados em ideias misóginas de superioridade masculina, de discriminação contra a mulher e de desprezo a ela ou à sua vida. Tais elementos culturais e seu sistema de crenças o levama crer que tem suficiente poder para determinar a vida e o corpo das mulheres, para castigá-las ou puni-las, e em última instância, para preservar ordens sociais de inferioridade e opressão. Esses mesmos elementos culturais permitem que o agressor se veja fortalecido como homem, através da conduta realizada (ONU Mulheres, 2014, p. 39).


O estudo da construção político-epistemológica do conceito, bem como das elaborações legislativas do Sul Global, igualmente nos auxilia nessa tarefa.


Recorrendo ao país fonte do termo, o México definiu o feminicídio no art. 325 do Código Penal Federal, assinalando que o comete quem priva a vida de uma mulher por razões de gênero, as quais se configuram se houver alguma das seguintes circunstâncias: (i) sinais de violência sexual de qualquer tipo; (ii) lesões ou mutilações infamantes ou degradantes ou atos de necrofilia; (iii) antecedentes de qualquer tipo de violência doméstica, laboral ou escolar do agente contra a vítima; (iv) prévia relação sentimental, afetiva ou de confiança entre as partes; (v) prévias ameaças relacionadas ao fato delituoso, constrangimento ou lesões do agressor na vítima; (vi) prévia submissão de incomunicabilidade (isolamento) da vítima; (vii) exposição on exibição do corpo em lugar público.


Percebe-se facilmente que, embora o nosso PL tenha sido modificado substancialmente na tramitação no Congresso, é possível aproveitar tanto sua teleologia, quanto o recurso ao direito comparado, para reconhecer situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher pelas elementares descritivas. A adoção da orientação criteriosa do Modelo de Protocolo Latino-Americano para Investigar, Processar, Julgar e Reparar Feminicídio (ONU Mulheres, 2014), das Diretrizes Nacionais (Brasil, 2016) e da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (2023) para julgamento com perspectiva de gênero, do mesmo modo, amenizaria a expressiva subnotificação dos casos.


Resta ressaltar, aliás, o encaminhamento dessas normativas no sentido de considerar, aprioristicamente, qualquer morte violenta de uma mulher (cisgênero, travesti ou transgênero) como feminicídio. Visa-se atentar para o cumprimento dos preceitos da Devida Diligência e da Perspectiva de Gênero, evitando falhas na obtenção de provas, nos laudos periciais, obstando revitimizações e violências institucionais, viabilizando medidas reparatórias de violação de direitos humanos e a responsabilidade do Estado. No âmbito da prevenção, a produção de estatísticas mais próximas da realidade experienciada pelas mulheres na estrutura patriarcal, interseccionada com o racismo e outros sistemas de dominação-subordinação, pode melhor traduzir as lacunas estatais, provocando a construção de políticas públicas mais adequadas ao enfrentamento desse fenômeno.


Conclusão

Pode-se concluir haver um padrão quanto à percepção do feminicídio pelo sistema brasileiro de justiça criminal. Quase que exclusivamente, a adequação típica se operacionaliza quando esses crimes são (i) cometidos por homens cisgêneros (ii) contra mulheres cisgêneros (iii) no contexto de uma (ex-)relação íntima (iv) de caráter heteroafetivo. Esses quatro elementos funcionam como vértices de um quadrado, que delimita, da fase investigatória à fase recursal, o que é e o que não é feminicídio.


Não seria incorreto afirmar que tal lógica hermenêutica e pragmática foi mobilizada pelos atores e atrizes do nosso sistema policial/jurisdicional de modo a gerar um enquadramento cis-heteronormativista à noção de feminicídio, pretensão já anunciada com as alterações ao PL, especialmente na supressão da elementar "gênero" e no apagamento das descrições de dominação sexual ou manifestação de ódio pela mutilação ou desfiguração da vítima.


É preciso extrapolar esses contornos obtusos e estereotipados, mesmo porquea própria violência de gênero, capilarizada em toda a estrutura social, extrapola-os. É necessário, pois, revisitar a definicção de feminicídio, de modo que se possa contemplar a violência letal contra meninas e mulheres como o ápice de um continuum de violências outras, estruturais, sistêmicas, sejam elas institucionais, simbólicas, políticas, obstétricas, laborais, acadêmicas etc. Logo, quanto mais camadas de dominação-opressão, numa perspectiva interseccional, maior a vulnerabilidade.


Por fim, não se trata de amplificar o paradigma punitivista, senão de conscientizar a sociedade e o Estado das múltiplas facetas da violência feminicida, a qual não se limita ao feminicídio íntimo e cis-heterossexual. Objetiva-se, na verdade, a advocacy, a incidência política no âmbito das instituições estatais, a fim de contribuir para a incorporação de referenciais críticos feministas, para a assistência qualificada da vítima, para efetivação do instituto da reparação, para a criação de mecanismos de evitabilidade de violências fatais, de revitimização e para o fortalecimento das vítimas diretas (de feminicídios tentados) e indiretas.



Para acessar o texto em sua versão original, acesse: https://doi.org/10.5281/zenodo.13631507


 
 
 

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